O que a Bíblia diz sobre quem tem direito à ‘terra prometida’?

Estudiosos da Bíblia e historiadores frequentemente apontam que a Bíblia não apresenta uma história completa e abrangente. Em vez disso, ela destaca eventos e memórias específicas com propósitos determinados. Seu conteúdo aborda origens, leis, ética, revelações divinas e a relação de uma nação com Deus.

A Bíblia não apresenta uma única voz, mas múltiplas vozes de diferentes épocas e lugares, reunidas em uma coleção de livros. O que conhecemos como Bíblia Hebraica, ou Antigo Testamento, foi consolidado principalmente entre o século VIII a.C. e o século II a.C., enquanto a Bíblia cristã acrescentou os escritos do Novo Testamento, que datam do século I d.C.

Além disso, a Bíblia nem sempre se expressa de maneira direta e tem sido traduzida e interpretada de diversas formas ao longo do tempo. Ela aborda extensivamente a questão da terra, mas sem transmitir uma mensagem única e definitiva. Em vez disso, há diversos pactos estabelecidos entre Deus e diferentes personagens (dentro de um contexto patriarcal), definindo onde determinados povos deveriam habitar.

No livro de Gênesis, Deus faz uma promessa a Abraão, um pastor nômade, garantindo que ele se tornaria o “pai de muitas nações”, cujos territórios se estenderiam do Nilo ao Eufrates. No entanto, essa promessa estava condicionada à manutenção de um pacto de fidelidade, simbolizado pela circuncisão masculina.

Gravura representando Abraão seguindo para a Terra de Canaã, guiado pela promessa divina: “Por meio de você, todas as famílias da terra serão abençoadas” (Gênesis 12:3).

Para um pastor nômade, essa promessa dizia respeito ao direito de circular livremente com seus rebanhos. Não há qualquer menção a Abraão destruindo cidades existentes ou expulsando habitantes, embora ele possa formar alianças e entrar em conflitos caso sua família seja ameaçada. Além disso, ele firma acordos com governantes locais.

Dentro dessa perspectiva bíblica, há espaço para diferentes povos coexistirem na mesma região. O território não é apresentado como uma posse exclusiva, mas sim como um mosaico de ocupações e convivência.

Os filhos de Abraão, Ismael e Isaque, herdam promessas importantes, ligadas à sua identidade como pastores nômades. A divisão ocorre da seguinte forma: a porção de Isaque é a Terra de Canaã, enquanto a de Ismael fica “a leste do Egito, na direção da Assíria”. Canaã corresponde aproximadamente à área que hoje abrange Israel, o noroeste da Jordânia e os Territórios Palestinos Ocupados. Essa região também era chamada de “Palestina” desde pelo menos o século V a.C.

Isaque tem dois filhos, Esaú e Jacó. Jacó recebe a promessa de Canaã, enquanto Esaú se estabelece em Edom, uma região que cobre parte do atual sudoeste da Jordânia e, posteriormente, o sul de Israel.

Jacó, que recebe o nome de Israel, tem doze filhos, os fundadores das doze tribos de Israel, conhecidas como israelitas. Essas tribos herdam a promessa de se estabelecer em Canaã, levando suas famílias e rebanhos. Entre elas está a tribo de Judá, da qual vêm os judeus (ou “judaítas”).

No entanto, a partir dos livros de Êxodo a Deuteronômio, a identidade dos israelitas muda. Deixam de ser apenas pastores nômades, tornam-se escravizados no Egito e, sob a liderança de Moisés, fogem em busca da terra prometida. Em Deuteronômio, Deus lhes garante a posse da terra, mas impõe uma condição clara: eles devem obedecer aos seus mandamentos. Caso contrário, há uma advertência severa:

“Mas se o seu coração se desviar e vocês não obedecerem… declaro-lhes hoje que vocês serão destruídos. Não viverão muito tempo na terra.”

Iluminura medieval representando Moisés recebendo as tábuas da lei no Monte Sinai, conforme descrito na Bíblia.

Essa promessa carrega um tom de alerta, deixando claro que a permanência na terra está vinculada à fidelidade a Deus.

Nessa perspectiva bíblica, a posse da terra está diretamente ligada à obediência dos israelitas às leis divinas. Um exemplo significativo disso aparece em Levítico 19:33-34:

“Quando um estrangeiro viver entre vocês na sua terra, não o maltratem. O estrangeiro que vive entre vocês deve ser tratado como um natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês também foram estrangeiros na terra do Egito.”

No livro de Josué, os israelitas conquistam partes de Canaã por meio de guerras, massacres e destruições, práticas comuns nos conflitos da antiguidade, mas que contrastam completamente com as leis de guerra atuais. As 12 tribos de Israel então dividem, pelo menos em teoria, os territórios conquistados e os ainda não ocupados. A tribo de Judá recebe a região ao redor de Jerusalém e ao sul.

No entanto, já no livro seguinte, Juízes, fica evidente que os israelitas não são o único povo presente na região e que, além disso, não estão completamente unificados. A terra continua sendo um mosaico de diferentes grupos habitando o mesmo território.

Nos livros dos profetas – como Amós, Oséias, Isaías, Jeremias e Ezequiel – há uma crítica constante ao povo de Israel por não cumprir as leis e os princípios éticos estabelecidos por Deus. A mensagem principal continua sendo que a promessa da terra é condicional e que Israel está falhando em manter a aliança divina.

O arco narrativo bíblico

O livro de Josué marca o início de uma narrativa que descreve uma sucessão de guerras e, apesar de algumas grandes vitórias, um declínio gradual que leva à perda territorial. Ao longo da história, percebe-se a decepção de Deus, que permite que outros povos locais e nações estrangeiras retomem territórios antes conquistados pelos israelitas. Esse processo continua até que quase toda a terra é perdida e os judeus são levados ao exílio na Babilônia.

Nos livros de Esdras e Neemias, os judeus voltam a Jerusalém e reassumem o controle de sua antiga cidade-templo e da região ao redor. Uma interpretação bíblica baseada nesses relatos indicaria que Judá é restaurada pacificamente nessa área, sem reivindicar outros territórios.

Enquanto isso, as demais tribos de Israel praticamente desaparecem, restando apenas um pequeno grupo em Samaria. Contudo, ainda há esperança na restauração das tribos. No livro de Ezequiel, é profetizado que Deus, no futuro, derrotaria impérios opressores e reviveria as doze tribos de Israel em uma região chamada pelo profeta de “terra de Israel”, onde governaria um rei judeu: o Messias (Ezequiel 37:22, 24).

Assim, dentro dessa visão bíblica, apenas o Messias teria o poder de reunir milagrosamente Israel e conduzi-lo de volta à terra prometida.

E uma grande questão surge nessa visão de restauração: quem realmente representa Israel? Essa pergunta vai além da Bíblia Hebraica e se estende para períodos posteriores.

Acrescentando à história

No século II a.C., reis-sacerdotes judeus governando Judá – que então passou a ser conhecida como Judeia – começaram a expandir seu território, conquistando regiões vizinhas, incluindo comunidades de outros israelitas remanescentes. Judeus se estabeleceram nesses territórios, e alguns dos habitantes locais – os palestinos que haviam adotado a cultura grega – se converteram ao judaísmo.

Para esses reis-sacerdotes, os judeus eram os únicos verdadeiros representantes das doze tribos de Israel, sendo os exclusivos herdeiros da promessa divina. No entanto, seu domínio durou pouco mais de um século – e essa parte da história não está na Bíblia.

Depois veio o cristianismo. No século IV d.C., tornou-se a religião oficial dos imperadores romanos, que passaram a ter um interesse especial pela Palestina. Para os cristãos, que viam Jesus como o Messias, eles próprios se tornaram os herdeiros da promessa de Deus, substituindo as reivindicações judaicas.

A partir daí, surgiram as províncias palestinas do Império Bizantino, a ideia de Terra Santa e, mais tarde, as Cruzadas – todas justificadas por interpretações de passagens bíblicas específicas.

Embora a Bíblia apresente diferentes e complexas perspectivas sobre o assentamento na terra prometida, o modelo de divisão descrito no Livro de Josué é o que algumas pessoas, ainda hoje, utilizam como base para reivindicações territoriais “bíblicas”. No entanto, essa ideia é frequentemente combinada com uma noção extra-bíblica, que sustenta que apenas os judeus herdaram a promessa.

O Livro de Josué tornou-se uma referência para reivindicações sionistas extremistas e até mesmo para alguns aspectos do exército israelense, conforme explorado pela estudiosa Rachel Havrelock. No entanto, essa leitura isola Josué do arco narrativo completo da Bíblia.

Mas, se olharmos além da Bíblia, veremos que a história da região é muito mais complexa. Povos se converteram, casaram-se e também lutaram entre si. Com o tempo, judeus se tornaram cristãos, cristãos se tornaram muçulmanos – e, com a arabização e a transição cultural entre os séculos VII e IX, muitos povos se tornaram árabes.

Alguns grupos fugiram ou foram expulsos, mas mantiveram suas identidades, tradições e, em certos momentos, retornaram. O retorno do povo judeu à terra foi um evento marcante para a identidade nacional judaica. Mas os palestinos também são descendentes dos povos antigos que viveram nesses mesmos lugares.

A Bíblia enfatiza o amor de Deus por Israel, mas a terra sempre foi um mosaico de diferentes povos. Afinal, como Deus disse a Abraão, “por meio de você, todas as famílias da terra serão abençoadas”.

Referência: TheConversation

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